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O Roubo na Quinta das Vinhas

Fernando Pessoa


I


Apesar de me maçar, por antecipação, a ideia de ir contar ao Dr. Quaresma toda a história do roubo, não podia decentemente furtar-me a fazê-lo. Por isso, resignando-me com placidez, lhe expus, resumindo o mais possível, todos os factos que vão expostos no decurso desta narrativa. Fiz, como é de supor, algumas supressões: não falei nas dívidas do José Alves, nem no caso dos quinhentos escudos, e muito menos da parte do discurso do Lima de que estas coisas tinham sido o assunto e a base. Não pude, porém, esquivar-me a falar da hipótese policial, de que havia uma quadrilha a trabalhar, e que a polícia suspeitava que o fizessem em ligação com alguém de dentro da Quinta das Vinhas. Se não explicasse isto, era incompreensível a prisão de José Algarvio; e, aliás, bastava que o Dr. Quaresma se interessasse activamente por ele para o descobrir na polícia.


O Dr. Quaresma ouviu-me com grande atenção mas, se assim posso dizer, com uma atenção dividida. Parecia, ao mesmo tempo que me ouvia com os olhos, estar escutando uma voz que não era a minha. Reconheço o absurdo deste modo de dizer, mas transcrevo a minha impressão sensorial. Na realidade, o Dr. Quaresma parecia, sem deixar de me ouvir atentamente, estar todavia a seguir o decurso interior de uma outra coisa — raciocínio ou conjectura ligada — que não deixava de ter relação com o que eu ia narrando.


Acabei, por fim, a minha narrativa, e supunha-me livre do fardo dela. Mas o Dr. Quaresma, que não me interrompera enquanto eu contava, começou nesta altura a interrogar-me. Pediu-me uma descrição minuciosa das pessoas que estavam na casa por ocasião do roubo; a minha descrição directa havia sido sumária. Interrogou-me sobre idades, profissões, estados financeiros, e tudo mais. Comecei a sentir-me menos à vontade, sobretudo quando o José Alves era o assunto do interrogatório. Eu não podia dizer toda a verdade sobre o José Alves, mas também, em simples justiça ao preso, não podia suprimir redondamente os factos. Além disso, não estava muito seguro que o Dr. Quaresma, falando depois à polícia, não iria descobrir os fundamentos da outra hipótese do agente Lima. Decidi narrar o caso de certas atrapalhações financeiras do José Alves, não explicando o jogo que ele motivara, nem fazendo referência ao furto anterior.


A certa altura, porém, comecei a atrapalhar-me, pois o médico entrou no assunto por desvios. Perguntou-me se as relações entre pai e filho tinham sido sempre boas, ao que eu respondi que me parecia que sim, mas o próprio verbo “parecer” me soou cauteloso demais, e receei que levasse ao Dr. Quaresma mais informação do que eu queria dar. Com essas e outras perguntas me entreteve, sem me divertir, durante cerca de uma hora e meia, a contar do início da minha conversa.


II


— Só o posso fazer pondo a mão no verdadeiro criminoso.


— Então faça-o, Sr. Dr. Quaresma.


Quaresma desdobrou as mãos, estendeu a dextra e tocou-me no ombro. Por fim, levantou-se da cadeira, e dirigiu-se para um cabide onde tinha o chapéu.


— Não se importa que saíssemos? — perguntou. — Queria passear um pouco para acabar uns certos raciocínios.


— Não me importo nada. — E saímos.


Descemos a Rua dos Fanqueiros. Estava uma tarde linda de Outono. Seguimos lado a lado, silenciosos ambos, e, no fim da rua, seguindo o movimento do Dr. Quaresma, viramos à direita, para o Terreiro do Paço. O Dr. Quaresma avançou lentamente, cabisbaixo, as mãos sempre cruzadas atrás das costas, até à muralha da esquerda. Ali parou, e eu com ele, e contemplou vagamente o rio. Esteve assim um momento. Depois voltou-se para mim com uma expressão grave e directa nos olhos naturalmente um pouco febris.


— Eu salvo o José Algarvio — disse. — Mas, antes de o fazer, preciso estudar com muito cuidado como hei de proceder no assunto. Calhou muito bem que fosse o Sr. Claro que me procurasse, porque é consigo que eu tenho estudar a sério a resolução do assunto. Diga-me uma coisa: ocorreu-lhe alguma vez que o José Alves pudesse ser suspeito?


— Se me ocorreu? Não. Como sabe o Sr. Dr. Quaresma que ele é, ou pode ser suspeito?


— Concluí das palavras que o Sr. Claro me não disse. — Fez uma pausa. — Teria pena que o senhor tivesse pensado que o José Alves pudesse ser suspeito. Ele é o seu amigo, não é verdade?


III


— Se eu salvar este José Algarvio, o José Alves será fatalmente preso.


— Talvez não — disse eu.


— É-o com certeza. Será preso e será condenado. Este José Algarvio salva-se com facilidade, nem era preciso o meu auxílio para nada. O José Alves é que se não salva. É pena. Quer dizer, não se salva, se o caso seguir o seu curso entregue só à polícia. Há só um processo de o salvar: é pôr a mão no criminoso. Ora a polícia não é capaz de o fazer, porque caiu, desde o princípio, num erro fundamental, naquele mesmo erro em que o criminoso quis que ele caísse.


— E o Sr. Dr. Quaresma sabe quem é criminoso?


— Sei. Quer que eu salve o José Alves?


— Quero — disse eu hesitantemente, sem perceber o que se seguiria.


IV


O critério de investigação que adopto, porque o acho o mais racional de todos, é o dividir a investigação preliminar em três tempos. O primeiro tempo é determinar quais são os factos incontestáveis, absolutamente incontestáveis, eliminando todos os elementos que não o sejam, ou porque não há certeza directa deles, ou porque sejam conclusões — talvez lógicas, talvez inevitáveis — tiradas desses factos, mas, em todo o caso conclusões e não factos.

Citarei um exemplo para esclarecer inteiramente o que desejo significar com estas observações. Suponha que está um dia de chuva e que estou em casa. Aparece-me um indivíduo com o fato a escorrer em água. É natural que eu pense: “Este homem andou à chuva e assim ficou molhado.” Mas pode bem ser que não andasse à chuva, que entornassem água sobre ele aqui dentro de casa. A maioria da gente consideraria um facto o ter andado esse homem à chuva. Afinal é uma conclusão — uma conclusão naturalíssima, mas uma conclusão, ou uma dedução. Se eu tivesse estado à janela, tivesse visto esse indivíduo vir pela rua fora sob uma chuva pesada, poderia ainda, é certo, esse molhar da chuva ser suplementado por outra circunstância qualquer, mas alguma coisa da chuva teria molhado o homem, e eu poderia, em todo o caso, afirmar que o homem tinha andado à chuva. E então isso seria um facto.


Ora, neste caso do roubo na Quinta das Vinhas, há alguns factos que parecem incontestáveis (digo “parecem”, pois eles se baseiam em testemunhos que podem ser falsos, involuntária ou propositadamente). Esses factos são: que cerca da meia-noite do dia... de Setembro se deu uma explosão de dinamite na fechadura do cofre no escritório da Quinta das Vinhas; que esse escritório e a saleta anexa estavam fechados por dentro, aberta a janela da saleta, e dois cães mortos por envenenamento; que se verificou nessa altura não estarem no cofre dinamitado uns títulos (cem) da Dívida Externa Portuguesa, 1.ª série, que haviam estado nesse cofre; que se não encontrou sinal de ninguém suspeito na busca que se passou imediatamente nas proximidades da casa; que todos os títulos roubados, verificados os seus números por uma lista que existia em poder do proprietário dos títulos, foram passados para a circulação bancária da praça sem que qualquer deles fosse apanhado no processo de passagem. Factos, simplesmente factos, há só estes. Quanto mais se queira passar por facto é simplesmente dedução.


Estabelecidos os factos incontestáveis, chegamos ao segundo tempo da investigação. Este tempo consiste no seguinte: em descobrir qual é a hipótese que mais completamente liga e explica os factos incontestáveis. Mas, descoberta esta hipótese, há que investigar que outras hipóteses haverá que também, embora com menos probabilidade aparente, se ajustem ao conjunto dos mesmos factos. E essas hipóteses determinam-se por um processo simples: descoberta a hipótese mais provável, estabelece-se logo a hipótese contrária e verifica-se qual o grau de probabilidade que a essa hipótese contrária compete. Estabelecido isto, será possível partir para as outras hipóteses, isto é, aquelas que estejam intermédias entre a mais provável e a sua contrária, e ir verificando, a uma e uma, quais as probabilidades delas.

No caso de que se estamos tratando, a hipótese aparentemente mais provável é a que toda a gente aceitou desde logo, instintivamente, achando-a tão provável que a tomou, até, por facto e não por hipótese ou conclusão. Essa hipótese é de que o roubo houvesse sido praticado por um indivíduo ou indivíduos, estranhos à Quinta das Vinhas, que houvessem envenenado os cães, entrando em casa escondidos, posto a dinamite, roubado os títulos e fugindo depois, suficientemente depressa para não serem vistos. Conhecida esta hipótese, estabeleceremos a hipótese contrária. A hipótese contrária é que o roubo não tenha sido praticado por indivíduos estranhos, que não tenha havido nenhuma das circunstâncias aparentes já indicadas. É isso que constitui, como é de ver, a hipótese contrária.


Ora que probabilidade se pode ligar a esta hipótese contrária? Como a hipótese mais provável, a mais imediata para todos, é que o roubo fosse feito por estranhos, e nas circunstâncias indicadas, a hipótese contrária será realmente provável apenas num caso: se houve a intenção de simular esse roubo por estranhos. Nesse caso, a hipótese contrária é provável; tão provável como a primitiva é natural.


Estamos, pois, perante duas hipóteses prováveis, e que entre si se opõem. Qual das duas é a mais provável? Temos que considerar isto à luz do exame das circunstâncias directas do roubo ou seja, considerando (1.°) o local do roubo, (2.°) a hora em que o roubo foi praticado, (3.°) a natureza do objecto roubado. São estes os três elementos materiais directos do sucesso.


O local do roubo pode ser considerado sob dois aspectos — o local em si mesmo, e a escolha deste local para roubo; ou seja, o ser o roubo praticado no escritório da Quinta das Vinhas, e o ser a Quinta das Vinhas o local escolhido para o roubo. Quanto a dar-se o roubo no escritório da Quinta, nada há de extraordinário pois ali é que está o cofre, e o roubo havia forçosamente de ser ali. Mas quanto a escolher a Quinta das Vinhas para casa a roubar, o caso é diferente. Que presunção havia de que o cofre da Quinta das Vinhas era mais proveitoso de roubar que qualquer outro cofre? Que presunção dessa ordem havia para estranhos? Quem tivesse a habilidade e os processos para roubar como se roubou neste caso, por que escolheria a Quinta das Vinhas quando, sem desperdício de habilidade, nem maior risco, obteria melhores vantagens atacando outro ponto? A probabilidade neste caso é, pois, em favor de uma pessoa não estranha à casa capaz de roubar esse cofre por não ter outro à mão — razão suficiente e clara — e sentindo-se na necessidade de simular o roubo dum estranho para desviar a atenção de alguém de dentro da casa, entre os quais ele estaria incluído.


Agora quanto à hora do roubo. Quanto à hora do roubo, é mais estranha se ele foi obra de estranhos do que se foi obra de alguém de dentro de casa. Entrado em casa, o gatuno estranho deixa passar o tempo necessário para ter a certeza, ou a probabilidade grande de estarem todos a dormir. Para quê operar logo, ainda que não se soubesse que tinha ficado alguém cá em baixo? Para estranhos é a hora mais espantosa que se pode imaginar. Mas para alguém de dentro da casa, que quisesse simular um roubo por estranhos, a hora é exactamente a que seria escolhida. Estava quase toda a gente deitada, mas ainda estava alguém a pé. Não havia tanta gente a pé que se corresse o risco de cruzar com alguém ao dispor as coisas para a simulação; mas havia até o número bastante de pessoas para marcar a hora — neste caso a pretensa hora — do roubo e para dar sinal de que o roubo estava cometido.


A natureza do objecto roubado... Se o roubo foi praticado por estranhos, ou iam roubar os títulos ou não iam roubar senão o que encontrassem. Contra a hipótese de que iam ao acaso, milita a própria natureza do roubo, e a maneira como depois foi passada a matéria roubada parece indicar preparação para dispor dela.


***


Em toda a investigação de um facto, cuja natureza se desconhece e se quer saber ou cujo autor se ignora e se quer descobrir, o que importa, acima e antes de tudo, é isolar nele qualquer elemento que, sendo absolutamente indubitável, seja, ao mesmo tempo, inesperado ou estranho. Este roubo contém dois elementos que são inesperados ou estranhos — as circunstâncias do roubo, e o facto de que se conseguiu passar os títulos sem encontrar obstáculos. Por um destes dois factos, portanto, convém que principiemos a investigação.

Mas, isolados que sejam os factos de que se não possa duvidar que se deram, e que são estranhos (presumindo, é claro, que haja mais do que um), escolheremos, para verdadeiro princípio da investigação, aquele desses factos que seja susceptível de menos interpretações, isto é, aquele que pareça mais misterioso. Ora a passagem dos títulos é susceptível de várias interpretações; pode haver um conluio com qualquer indivíduo num banco ou na bolsa; pode haver um erro qualquer na lista dos títulos; pode ter havido uma troca de títulos sem que se verificasse a troca, nem portanto se conferissem os números. Mas sobre as circunstâncias do próprio roubo não há várias hipóteses plausíveis. Há simples estranheza.


Sim. O roubo foi praticado, ao que se viu, por um processo ruidoso, e a hora não tão cedo que fosse dia, mas não tão tarde que houvesse a certeza de estarem todos deitados em casa, como efectivamente não estavam. Podendo o cofre ser aberto por vários processos que não envolviam ruído, foi escolhido um processo que precisamente o causava, e, ainda, um processo invulgar. Resultado: foi escolhido um processo invulgar porque era desnecessário e produzia alarme — exactamente as razões contrárias àquelas que levariam a escolher um processo invulgar. Que a intenção era roubar os títulos é evidente, primeiro porque o modo misterioso como se passaram os títulos deve, qualquer que fosse, ter sido objecto de preparação; segundo, porque, sendo o roubo praticado com gente dentro de casa, não haveria tempo para roubar mais que os títulos.


Ora estas circunstâncias levam-nos a uma conclusão: que o processo empregado para o roubo foi empregado precisamente para dar alarme. Ora não se dá alarme senão para um fim: para enganar sobre a hora do roubo. E, se considerarmos que o processo de roubo — uma deflagração por rastilho — é coisa que pode ser disposta por uma pessoa para produzir resultado quando essa pessoa não esteja presente, chegamos a outra e ulterior conclusão: que o roubo não foi praticado pela deflagração de dinamite. Se o não foi, é porque foi por chave falsa e se foi por chave falsa, quem roubou era uma pessoa da casa, que, pela deflagração, quis dar a ideia de que quem roubara era pessoa de fora. Mas, se essa pessoa queria dar a ideia de que o que roubava não era ele, haveria de completar o seu cenário com o cuidado de estar onde o vissem na ocasião da deflagração e assim assegurar a si mesmo um álibi suficiente. Na altura da deflagração estavam todos deitados menos duas pessoas — o pai Borba e V. Ex.ª. E, como era ele o proprietário dos títulos, a primeira suspeita é sobre V. Ex.ª que recai.


Para que a suspeita se confirme, ou se confirme mais, é preciso ver, primeiro, se, um pouco antes de se dar a deflagração, V. Ex.ª saiu de casa de jantar sob um pretexto qualquer e se demorou bastante para dispor o cenário. Ora V. Ex.ª saiu sob um pretexto directo — o ter deixado uma cigarreira no quarto do aspirante —, e demorou-se o bastante para dispor o cenário completo, aliás obra de minutos sobretudo para quem, tendo tudo estudado, procede rapidamente.


V


O Dr. Quaresma desligou as mãos detrás das costas, olhou sem expressão e rapidamente para mim, e, estendendo a mão direita de repente, tocou-me no ombro. Depois tomou à posição em que estava, as mãos outra vez atrás das costas, atadas, e os olhos perdidos sobre o Tejo.


Como uma bola de sabão, estoirou-me a alma, sem ruído, dentro de mim. Fiquei suspenso de um vácuo interior, sem razão, sem fala, sem gesto. Se o Dr. Quaresma tivesse dito qualquer coisa, eu teria respondido qualquer coisa, teria tido a que adaptar a minha razão e a minha voz. Ao silêncio não pude responder nada. O seu gesto era guilhotinante. No longo espaço de curtos segundos tentei desesperadamente formar uma atitude, uma palavra, um gesto, qualquer coisa... Não pude... e então compreendi violentamente quanto pode em nós, se sabem excitá-la, a consciência da culpabilidade. Fosse eu inocente, e alguma coisa diria, alguma coisa sucederia. Com cada fracção de segundo do meu silêncio a minha culpabilidade enchia o espaço. Com cada fracção da minha consciência desse silêncio aumentava a minha incapacidade de falar, de agir, de me defender. A minha derrota era completa. No fim do que deviam ser poucos segundos reconheci-o inteiramente.


O Dr. Quaresma desviou o olhar do Tejo, mas não o passou por mim. Voltou-se de costas para o rio, disse-me, com um tom de quem antes nada dissera que pesasse: “E se nós nos fossemos embora?” E, avançando ele para o Arco da Rua Augusta, avancei, silencioso ao lado dele, soterrado em mim sob a acusação definitiva que não fora proferida.


A meio da Praça o Dr. Quaresma voltou para mim a face, mas não os olhos, e disse: “O que pensa fazer?”


Tive uma grande vontade de chorar, de lhe pedir perdão, a ele, a quem nada fizera. Durante um momento não pude falar. Depois encontrei a minha voz dizendo-lhe: “Não sei.” E acrescentei, passado um momento: “O doutor dirá o que quiser.”


O Dr. Quaresma olhou então em cheio para mim, e disse-me com grande simplicidade: “Eu não tenho nada a dizer. Como já compreendeu, decifrei — posso dizer-lhe que decifrei com muita facilidade — o seu caso. O resto é consigo”.


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