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Corrida de sangue

Atualizado: 25 de mai. de 2020

Bruno Clemente


Sento no meu sofá e tomo um gole de meu chá gelado. Foi uma semana cansativa. Acabei de mudar-me para um apartamento mais ao centro da cidade e creio que todos aqueles que já tiveram de passar por uma mudança, sabem o quão exaustivo essa experiência pode ser. Passo a mão pelo apoio do sofá. Tudo ainda está plastificado.


Depois de tomar meu chá, vou até meu quarto, pois ainda tenho algumas malas para desfazer. Chego ao quarto e começo a esvaziar as malas e a guardar os itens nos locais apropriados. De uma das malas, eu retiro meu par de tênis de corrida. Ao olhar para eles, me dá vontade de sair para uma breve corrida. Já faz tempo desde a última vez que corri.

Por outro lado, amanhã é sábado e tenho que trabalhar o dia inteiro. Sou professor de cursinho preparatório para o vestibular e leciono geometria analítica.


“Deixe de ser preguiçoso. Você vai se tornar um velho barrigudo se continuar com essa preguiça”, digo para mim mesmo em minha cabeça. Por fim, visto uma roupa mais leve, coloco os tênis e vou para o elevador.


Não conheço muito da região, por isso não tenho um percurso pré-definido. Por isso, olho em meu relógio e resolvo que vou correr durante uma hora. Escolho uma direção e vou correndo sem um destino.


Em meu caminho, passo por vários bares que me parecem muito interessantes. Faço uma nota mental de visitá-los algum dia. Passo também por várias praças e, em muitas delas, é possível ver pessoas usando ou vendendo drogas. Nestes lugares, aperto o passo.


Conforme vou continuando em minha corrida, chego numa região da cidade em que nunca estive antes. Ela é um subúrbio com casas visivelmente de baixa renda. Não consiste de uma favela, porém não se vê muita riqueza no local. Olho em meu relógio e vejo que já passou mais de 35 minutos de corrida, logo, começo a voltar.


Não passados cinco minutos desde que comecei meu retorno, vejo, a uns 200 metros, em minha frente, a figura de um bêbado. Ele anda cambaleando e segura em sua mão direita uma garrafa de vodca barata. Quando estou a uns cem metros dele, ele olha para traz e me encara. Devido à distância e à escuridão da noite, não consigo ver perfeitamente sua face, todavia, é claro que ele me encara com pavor. Então, ele se vira de novo para frente e começa a correr.


Primeiramente, acho muito estranho a reação dele. Porém, logo associo que em sua mente embriagada ele raciocinou que eu deveria estar correndo atrás dele por algum motivo e começo a rir. Um toque de maldade passa por minha cabeça e aperto o passo. O pobre bêbado percebendo isso, também começa a correr mais rápido.


Não tenho muita noção do tempo, mas acredito que essa pequena perseguição durou cerca de um minuto. Depois, o homem tropeça em suas próprias pernas cambaleantes e cai ao chão. Vou me aproximando dele com um sorriso no rosto, rindo de toda a situação. Imagens de eu mesmo bêbado e fazendo muita besteira durante o tempo de faculdade passam pela minha cabeça. Foram bons anos.


Vejo ele se debatendo de bruços, o que só aumenta a graça de toda a situação. Porém, quando chego perto, ele se vira e neste momento meus olhos congelam. Ao cair, seu corpo esmagou a garrafa de bebida e pedaços de vidro entraram em sua carne. Vejo vidro enfiado em seu peito, vejo o sangue espirrar de sua garganta, onde há um grande corte. Seu rosto está coberto de sangue e percebo que um de seus olhos está furado.


Ao olhar para essa cena tenebrosa, meu coração palpita tanto da corrida quanto da adrenalina. Sinto o pavor se apoderar de meu corpo. Seus olhos sangrentos olham para mim pedindo ajuda. Ele estende a sua mão em minha direção, porém, em meu corpo, eu só sinto medo e logo começo a correr. Não sei bem o porquê fiz aquilo. Só sei que tinha que correr daquele olho que me pedia por misericórdia.


As coisas ao meu redor passavam rápido. Não me lembro muito de minha volta para casa, pois em meu cérebro eu só via sangue e aquele maldito olho. Ao entrar em meu apartamento, olhei o relógio. Neste momento, percebi o quão rápido eu fiz a corrida de volta. Passaram-se apenas 45 minutos desde que sai de meu apartamento para correr, entretanto, aquele homem que voltou para o apartamento não foi o mesmo que saiu. Não, esse estava com o coração manchado de culpa.


Dirigi-me ao banheiro e encarei a mim mesmo no espelho. Senti-me enjoado e tive que me abaixar no vaso para vomitar. Vomitei até apenas bile e ácido estomacal saírem de minha boca e depois vomitei um pouco mais. Voltei a me encarar no espelho e, neste momento, percebi que tinha uma pequena mancha de sangue do tamanho de uma moeda de dez centavos em minha bochecha esquerda. Acredito que devia ter respingado quando o pobre homem ergueu seu braço em minha direção. Ele ergueu pedindo ajuda. Mas eu não o ajudei. Não, eu corri. Sou culpado. Sou…


Preciso me limpar. Entro no chuveiro e ligo a água gelada. Percebo que não tirei a minha roupa ou o tênis. Fecho o chuveiro, despindo-me, e jogo a roupa dentro da pia do banheiro. Depois, volto a tomar meu banho gelado. Esfrego-me com força, tentando tirar de mim aquela sujeira de um homem culpado. Ainda consigo sentir em meu nariz o cheiro adocicado do álcool, o cheiro de fedor de um homem que provavelmente não tomava banho há mais de uma semana. Mas também me lembro do cheiro metálico de sangue em toda sua esplendência bordô.


Fecho meus olhos e tento mudar de assunto em minha cabeça. De repente, sinto a água começar a ficar quente. Quando abro os olhos, estou cercado de sangue. Olho para cima e vejo o sangue saindo da ducha do chuveiro. Não acredito no que estou vendo. Fecho os olhos e tento me convencer de que aquilo não é real. Não pode ser real. NÃO PODE! Quando abro os olhos, estou banhado em apenas água, porém, ela continua quente, o que faz com que eu vomite mais uma vez.


Saindo do banho, não tenho coragem de me olhar no espelho de novo. Vou direto para a cama. Tento dormir, porém, o ocorrido passa por minha cabeça todo o tempo. Durante o pouco período de tempo que consigo dormir, vejo a imagem do pobre homem pedindo ajuda para mim, porém eu pego um machado e bato nele até ele parar de se mexer. Acordo assustado e decido parar de tentar dormir. Vou para meu computador e passo o resto da noite preparando meus planos de aula.


Pela manhã, vou até a cozinha e preparo um café bem forte. Depois, saio e vou em direção à escola onde dou aulas. Meu trabalho é bem perto de minha nova residência. Na verdade, esse foi o principal fator de eu fazer a mudança. Logo, vou a pé e tento tirar as imagens da última corrida de minha mente.


O dia passa tranquilo. Por algum motivo, matemática sempre foi minha grande paixão desde pequeno e por isso consigo me concentrar na minha aula. Antes de me dirigir para casa, pego algumas provas que tenho que corrigir. Não gosto de passar meus domingos corrigindo prova, mas acho que elas serão um bom método para limpar a minha cabeça.


Chego em casa rapidamente, preparo dois sanduíches e vou para a escrivaninha de meu quarto começar as correções. Depois de uma hora, resolvo voltar à cozinha a fim de preparar um gostoso chimarrão. Quando abro o armário para pegar a erva mate, vejo uma garrafa de Jack Daniels. Ela foi presente de meus pais quando terminei o meu mestrado e nunca a tinha aberto. Imagens do homem do dia anterior, segurando sua garrafa de vodca barata na mão, passam pela minha cabeça.


“Acho que você merece pelo menos uma dose”, penso eu. Em vez de pegar a erva de chimarrão, pego a garrafa e um copo e me sento à mesa. Abro a garrafa e sinto seu gostoso aroma. Sirvo-me um copo e fico algum tempo olhando para a bebida. Seguro o copo e resolvo brindar em silêncio ao pobre bêbado falecido. Sinto o gosto da bebida descer pela minha garganta. Tomo tudo com apenas um gole e sinto aquela típica queimação do álcool que faz meus olhos lagrimejarem.


Quando vou guardar a garrafa no armário, penso novamente: “Acho que devo tomar mais uma. Desta vez, para mim mesmo. Eu com certeza vou precisar...”. Sento-me novamente e tomo mais um copo. Neste momento, desenvolvo uma certa fixação pela bebida. Depois do meu sexto copo, decido que vou tentar terminar a bebida sozinho. Talvez como uma forma de relembrar meus tempos de graduação. Talvez como uma forma de esquecer tudo que aconteceu nas últimas 24 horas.


Bêbado não conta as horas. Não sei quanto tempo fiquei bebendo, mas quando me dei conta, a bebida tinha acabado. Levanto-me com violência e quebro a garrafa contra a parede, gritando em alegria. Vou andando cambaleando até minha sala de estar. Na mesma sala onde ontem eu me encontrava sentado tomando meu chá gelado.


Não, o homem que estava sentado naquele sofá era um homem inocente. Hoje sou um homem culpado. Vou até a sacada de meu apartamento e olho para baixo. Eu moro no décimo andar e com isso tenho uma grande vista da cidade. Entretanto, para meu cérebro entorpecido, os prédios parecem se contorcer como cobras presas ao chão pelas caudas e logo começo a dar gargalhadas sozinho. Conforme vou rindo, começo a sentir algo que a princípio me é peculiar, porém logo torna-se bem familiar. Começo a sentir um adocicado cheiro de álcool barato. Esse cheiro é logo seguido por um fedor de sujeira humana. Enfim, o cheiro transforma-se em um cheiro metálico, um cheiro conhecido, um cheiro de sangue.


Quando me viro de volta em direção à sala de estar, eu o vejo. Ele está ali em pé, atrás de mim, do mesmo jeito como eu me lembro. Do mesmo jeito de quando ele estava deitado no asfalto frio da noite passada. A única coisa diferente é aquele olho. Aquele olho que antes pedia piedade e ajuda, agora possui um olhar sombrio de ódio. Um olhar que me fuzila.


Logo sinto o calor de minha urina passando por minhas calças. Ele estende aquela mão. A mesma mão que antes me suplicava, agora me segura com força pelo pescoço. Sinto o frio de seu corpo. Sinto sua mão suja daquele sangue que já havia coagulado. E sinto todo ódio de um homem a quem injustiça foi feita. “Por quê? ” - Passa por minha cabeça - “Por que eu tinha que correr atrás dele? Por que eu simplesmente não o ignorei? Por que eu não segui meu caminho tranquilamente? Por que eu não o ajudei enquanto ele estava lá deitado naquele asfalto? Por que eu corri? Por que eu corri? Por quê?”.


Começo a chorar enquanto me jogo de minha sacada.


Texto extraído do livro Contos de Horror (2016), editora Clock-Book.


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