Ariadne Marinho “Ontem eu acordei de um sonho mau...”
O calor finalmente deu tréguas à Cuiabá – a suspensão mesmo que temporária da hostilidade climática, tornando a temperatura amena e, portanto, muito convidativa aos desejos e anseios, da insensatez à luxúria. Eu penso, esta note promete a tudo o que for lícito e ilícito, sujo e marginal. Vou me afundar na escória. E urrarei aos quatros cantos o meu prazer sem relutância alguma.
A noite inicia-se no cinema com um clássico de Alfred Hitchcock – um filme com nome de mulher – porém, não me lembro. A fita começa com uma voz feminina sussurrando: “A noite passada sonhei que voltava à Manderley novamente. Mas... já não existe mais, exceto como ruína”.
Estou completamente envolvido naquela atmosfera sinistra de suspense projetada na tela quando sou arrebatado por fanfarrões presentes na mesma sala suja e mofada que eu. E digo inaudível aos outros: “As pessoas são um inferno e os telespectadores são trash”. O casal ao lado está se “pegando”.
Eu observo, ela está grávida. Isto me perturba. Pois eles são inconvenientes. Calo-me, engulo tudo, relaxo e aguardo o momento mais oportuno. No clímax do filme, a maioria das pessoas que se encontram naquele sórdido lugar grita. Neste exato instante, estendo meu braço, com a mão firme, saco um pequeno punhal e desfiro o golpe certeiro que corta a jugular do homem - ferimento mortal do acompanhante ao lado, que sangrará tudo em questão de minutos; com sorte, em segundos seu sofrimento terá fim.
Sua companhia, a mulher, continua com a cabeça entre as pernas dele chupando-o deleitosamente sem nada perceber. Ao sentir a minha presença olhando-a fixamente quase que agachado, ela se assusta e faz menção de erguer a cabeça, expondo o pescoço perfeito. Cravo o punhal na traqueia dela, sorrio e peço licença para passar.
Vou ao banheiro, despercebido, mas mantenho um sorriso sínico e um pouco sádico nos lábios. Assim me vejo no reflexo do espelho, enquanto lavo as mãos imundas. Entretanto, reflito, que sorte ou não que azar aquele sujeito teve, morreu de “pau duro e na boca dela”. Bem, está melhor do que muitos por aí.
Saio do cinema e não vejo uma viva alma na rua estreita e agora nebulosa da ex-“cidade verde”. O vento frio me reporta ao anoitecer da velha mansão de Manderley, que amedronta a personagem sem nome do cinema. Porém, continuo caminhando entorpecido pela violência crepuscular que floresce em mim, um artista. Da arte de fazer sofrer! Do punir sem remorso, do magistral espetáculo de suplício, onde os “corpos supliciados” blasfemam além da sinfonia de gritos, horrendos e ensurdecedores, uma verdadeira playlist de qualquer “festa da punição”.
Paro e contemplo a encruzilhada da zona de baixo meretrício que dará no beco do cu fácil. Sou educado, olho no relógio, é exatamente meia noite, então peço gentilmente a permissão de Exu e Baltazar, garantindo sua proteção e presença comigo hoje.
Rumo ao puteiro disfarçado, chamado “Restaurante e bar da tia Bia”, leio a placa em cima do balcão - “AGORA ACEITAMOS CARTÃO DE DÉBITO E CRÉDITO À VISTA”. Peço um conhaque. O garçom me serve e diz: “Estas noites atípicas cuiabanas dão pouco movimento”, e sai. Atento-me às travestis na calçada do lado oposto à minha mesa, sendo cercadas por playboys. Sem perceber, relembro mais uma cena do filme: quando a protagonista descobre que seu marido, o doce Maxim, nunca amou sua antiga e falecida esposa, mas apenas nutria um obscuro sentimento de ódio por ela. O garçom me traz outra dose. Bebo, pago e saio.
Durante a caminhada sou abordado pelos dois playboys que vi no bar. Eles estão em busca de prazer, e eu também. Ambos me convidam à promiscuidade. Sem medo, eu aceito. Entro no carro, lá bebemos, fumamos e cheiramos. O velocímetro está a 120 km, 140 km por hora numa estrada que não conheço. Paramos em algum terreno baldio. O rapaz do banco de carona já está inconsciente enquanto o outro me faz fortes investidas. Eu finjo concordar e descemos do carro.
Eu me preparo. Iniciam-se os jogos de socos, joelhadas, cotoveladas, depois, com um facão que retiro do carro, começo a estripá-lo, esquartejando parte por parte o seu corpo, ao som de melodiosos gritos e súplicas. O outro acorda e desce do carro. Eu o convido a participar da festa. Perplexo, ele tenta correr, mas eu reforço o convite com uma pedrada certeira, quase fatal, na sua nuca.
De repente, um perfume forte me inebria, eu fico tonto e caio. Imóvel, perco a consciência, a escuridão é tudo. Retomo o meu eu, como uma emersão das profundezas do mar. Estou na cama de pijama com a televisão ligada, está passando “Rebecca”. Eu me lembro de tudo e tenho a sensação de que não foi somente um sonho. Respiro fundo, deito novamente, acaricio meu rosto e percebo que há sangue em minhas mãos.
Texto extraído do livro Contos de Horror (2016), editora Clock-Book.
コメント