Juan Filipe Stacul
Para Tahiz, uma princesa no abismo.
Esse é um cântico de amor à escuridão que nos habita.
Ergueu-se das águas turvas com a rispidez de uma serra que dilacera a carne. Era a filha da noite, coberta pelo manto negro da morte. Cabelo esvoaçante, olhos brancos e cegos, boca desdentada e corpórea constituição de gárgula. À deusa caberia a tarefa de povoar o mundo com impurezas e escárnios, soturnas constelações de pesadelos disformes, aberrações irremediáveis e imperdoáveis por seus pecados grandiosos. Era a mãe do caos e da dor, a filha da depravação e a irmã da desolação e da angústia, emergia das profundezas mais recônditas dos desejos mais tenebrosos das criaturas mais imundas dos mundos mais horrendos.
Pairou sobre superfícies desérticas do desconhecido na tentativa de povoar o mundo com suas impurezas e males. Por fim, encontrando um solo virgem de qualquer contato humano, enfiou suas garras afiadas e negras, escavando um buraco quimérico onde plantaria a sua semente de caos e morte. Abriu a bocarra ausente de dentes e exclamou um grito de angústia que ecoou pelos zéfiros mais tristes dos cantos recônditos de lugar nenhum e de todo lugar, e de sua garganta nasceu uma água turva e pútrida que explodiu feérica para o exterior de seu corpanzil monstruoso. Vomitou. Vomitou um esperma denso repleto de fungos.
Vomitou pedaços de humanos e de animais assassinados, vomitou cogumelos e lesmas, larvas gosmentas e cascas podres de madeira. Preencheu o buraco com suas monstruosidades e aguardou o momento em que se levantaria das profundezas desconhecidas o fruto asqueroso de seu trabalho.
Após alguns minutos, a terra tremeu e da água repleta de aflições ergueu-se uma árvore majestosa. A árvore das angústias, no entanto, cresceu viva, clara, límpida, iluminada por uma atmosfera de mágica pureza. Sua copa de folhas infinitamente verdes reluzia ao sol escaldante do deserto e suas raízes multiplicavam-se na terra árida, semeando flores e arbustos onde quer que tocasse. O tronco de muitas eras rasgou-se em uma boca enorme. A árvore, então, proferiu suas palavras de júbilo:
Foi-se o tempo das amargas derrotas,
das mortes silenciosas,
dos uivos soturnos das esperanças desfeitas.
Foi-se o tempo da agonia pairando no ar da desumanidade,
da dor e do caos chorando na perplexidade dos sonhos impossíveis,
das agruras do desespero gritando no infinito horror.
Foi-se o tempo das tristezas inconsoláveis,
dos amores contrariados
dos sorrisos desfeitos pela cólera da maldade.
Foi-se o tempo das sombras,
pois anuncio a chegada da alegria,
canto meu cântico de júbilo,
meu cântico ao amor,
meu cântico à paz,
minha balada silenciosa de uma noite turva,
de uma noite de esperança,
de alegria,
de flores e de luzes.
A noite da ressurreição.
Tais palavras se cravaram no corpo da apavorante deusa como uma sanguessuga pegajosa e mortal. A criatura horrenda esbravejou seus impropérios com a voz retumbante de mil águas, com um ódio assassino de uma força incomensurável. Mas seu poder chegara ao fim. Nem mesmo as florezinhas mais inocentes, nem mesmo as criaturinhas mais frágeis, nem mesmo as mais puras sutilezas na natureza deixaram-se abalar pelo grito monstruoso da deusa do caos. Conforme anunciara a Grande Árvore, o domínio do mal chegara ao seu inevitável destino.
E a Grande Árvore uniu-se à Deusa do Caos. Outrora munida de infinita força, a criatura minguou-se em resquícios de coisa nenhuma e recolheu-se a insignificância do esquecimento, entranhando-se na casca dura de seu caule para que sobrevivesse eternamente como um mero parasita à sombra da benevolência e da bondade. Ficaria escondida na impossibilidade de uma existência completa, graças apenas à certeza de que a bondade não sobrevive sem a maldade enraizada em seu interior.
Então, dez mil anos se passaram desde a dissolução do mal que pairava sobre a superfície daquelas terras. O deserto cobriu-se cada vez mais de belezas inebriantes e de águas frescas, até que surgiram os primeiros resquícios de humanidade, as primeiras casas, e comércios, e vilas, e palácios, e reinos. O episódio da união das deusas tornara-se uma lenda cantarolada em fogueiras cintilantes, em festas regadas a vinho e carneiro fresco. As crianças murmuravam essas cantigas sobre a Grande Árvore e todos acreditavam no derradeiro desfecho da criatura malévola que espalhava suas imundícies pelos quatro ventos.
O que pessoa nenhuma naquelas terras conseguia supor, no entanto, é que a bocarra desdentada da deusa ainda se esgueirava em meio aos seus pensamentos mais inocentes, em meio a suas vidas mais medíocres, repletas das mais sutis abstrações domésticas e mesquinharias cotidianas. A presença da criatura medonha escorria pelas paredes das casas, e flutuava como uma névoa pelas ruas das cidades, infiltrava-se em cada quarto, em cada sala, em cada pátio, em cada alma. Sutilmente, espalhavam-se os sussurros pelos ouvidos dos maridos, e espalhava-se o calor pelos corpos das mulheres, e o suor pelos músculos negros dos escravos. A deusa, mais poderosa do que nunca, vivia das migalhas mudas dos pecados não praticados. E o caos pairava amordaçado, mas inabalável, no coração de cada morador.
Certa tarde, já cansado de vagar pelas ruas silenciosas de uma cidade cinzenta, o garoto escuta um sussurro sombrio, uma voz de muitas águas e muitos milênios que ecoa mefítica pelos becos, penetrando-lhe a alma como um calafrio agourento e medonho. E então, como em um sonho, vislumbra a silhueta daquela que ficara aprisionada por tanto tempo e em tamanho estupor, que nem conhece a coerência figurativa das criaturas femininas que vivem neste planeta. E a imagem é de um surrealismo tão vivo, que apenas a lembrança de sua sombra seria o suficiente para enlouquecer o mais lúcido dos seres.
Em um breve fragmento de tempo, a mulher o fita. É uma senhora idosa e de poucos e ralos cabelos grisalhos, a face monstruosa de um ser que não sabe o que é a luz. Cobre-se com um vestido iluminado de pérolas, límpido, sensual, que mostra suas pernas enrugadas, magras e cabeludas muito unidas na quase contenção de um possível orgasmo. A velha o fita, não se sabe rindo ou chorando, triste ou feliz, zangada ou receptiva. Em uma de suas mãos, segura pelo rabo um cão negro, pequeno e esquálido, sujo, semimorto.
A cena é rápida, quase um estalar de dedos: a mulher joga o animal no chão e pisa-lhe na cabeça com um ódio impossível. E sorri. E sua bocarra é tão inconcebível, indizível, não traduzível em imagens ou palavras mortais, que a escuridão é momentânea. Tudo se cobre de trevas, para todo o sempre, sem qualquer possibilidade de retorno – porque o vento já sussurra distante e o menino cego é a única testemunha do universo de caos recém liberto pela deusa das trevas. No meio do infinito, sem ver ou sentir qualquer coisa a não ser o próprio corpo e o vazio do universo negro ao seu redor, o garoto ainda consegue distinguir algumas palavras em um idioma incompreensível. Depois, mergulha no abismo da verdadeira lucidez, da compreensão total e epifânica, dos símbolos, da eterna felicidade. O garoto agora vive no único universo possível, no único abismo sem fim. Vive em lugar nenhum, em si mesmo. O garoto vive no desconfortável conforto de sua própria loucura.
Texto extraído do livro Contos de Horror (2016), editora Clock-Book.
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